“Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos”. O existir é um perpétuo mudar, um estar constantemente sendo e não-sendo, um devir perfeito; um constante fluir...

Se gosta seja amigo :) Namasté!

14 de outubro de 2007

O Rei



As árvores gigantescas acumularam-se perante os seus olhos num movimento subtil que poderia parecer hostil, mas que a ela apenas transmitiu conforto e paz. Olhando para cima, Siala apenas via rasgos de luz que conseguiam a esforço penetrar pela densa folhagem que revestia os altos ramos entrelaçados entre si. Aqui e ali, o azul celestial pintava os recantos não preenchidos de verde.
Respirou fundo.
A densa floresta estendia-se perante ela até perder de vista. Os cheiros conhecidos acalmaram-lhe a alma desgastada e angustiada. A terra que pisava novamente era humida e fofa sobre o seu peso, nos pés descalços sentia o formigueiro da vida que existia nela e para além dela, e no corpo a caricia do aroma de tudo o que nasce selvagem e intocado pelo tempo.
Passo a passo, Siala iniciou o caminho que perante ela se abria, sem lhe permitir ver onde a levava. As lágrimas caíam-lhe soltas pela face, perdendo-se na terra que as bebia e deixando um rasto de brilho que era seguido pelas fadas e elfos que sempre a acompanhavam, e que mais uma vez haviam dançado ao seu chamamento com a felicidade de quem sabe que todos os momentos devem ser festejados com alegria.
Alheia a tudo, Siala caminhava. Os ruídos que lhe chegavam apenas a lembravam de quem já tinha sido noutros tempos sem tempo, envolvendo-a ainda mais na atmosfera mágica daquela floresta que ela tão bem conhecia. Melros saltitavam entre os ramos e folhas, acompanhando-a e saudando-a com todo o seu esplendoroso canto vestido de negro. A brisa trouxe-lhe de presente o som longíquo de um bando de corvos, como que a dizer-lhe que não estava sózinha.
Subitamente ouviu muito mais que isso. Cascos. milhares de cascos. A Terra tremeu sobre os seus pés, e á sua frente abriu-se uma clareira imensa, de um verde esplendoroso e que não existe neste mundo humano. Ao longe uma nuvem de pó anunciava a chegada do Senhor daquele sítio, seguido por aqueles que protegia e guiava.
Siala deixou-se ficar onde estava sustendo a respiração. Era uma visão assustadora, mas o seu coração não sentiu medo. Deixou-se cair de joelhos no chão, e só aí se deu conta da raposa sentada ao seu lado. Como tudo era enorme naquele lugar! A raposa tinha quase o seu tamanho. Deixou a sua mão cair sobre o pelo vermelho e áspero e afagou-a ternamente, sem se surpreender nem assustar.
A raposa olhou-a sem se mover, "estavamos á tua espera, sabiamos que nos havias de saber encontrar"
Em sintonia perfeita, viraram o olhar para o bando de Veados que agora se espalhava pela verde clareira. Siala ergueu-se e caminhou lenta mas firmemente por entre eles. O cheiro pungente dos animais misturando-se com o que restava do seu odor humano, mesclando-se e transformando-se perfeitamente. Como eram enormes! De olhos escuros como lagos eternos, curiosos mas tão ternos...
A raposa mantinha-se no seu lugar, sorrindo e absorvendo os cheiros no seu paladar. Durante um tempo fora do tempo, Siala misturou-se e falou com cada gamo, com cada gazela, reabrindo portas que nunca havia fechado.
Um vento mais forte soprou então, e olhando para o alto da colina Siala viu aquele que procurava. Imponente. Os seus contornos desenhados pelo Sol mais brilhante que alguma vez vira. As patas altas e fortes, o peito robusto e largo. O pescoço forte envolvido num colar de pelo que reluzia como fogo. O seu corpo era perfeito e porpocionado, com musculos de ferro fléxiveis e aptos a todo e qualquer esforço. Na cabeça, erguia magestosamente as hastes do Rei de uma beleza indiscritivel. O seu olhar varria a imensidão daquela Terra com o amor e firmeza de um Rei, até que encontraram os olhos escuros de Siala.
Por breves instantes apenas aquele olhar existiu. Olhos presos nos olhos. A mesma cor. A mesma profundidade. Lagos sem fim.
Tudo tremeu. Siala sentiu-se a ofegar. A sua visão nublou-se. O coração disparou dentro do seu peito rasgando a carne e partindo os ossos. Uma dor lacinante percorreu-a dilacerando-a em mil pedaços. Sentiu a sua alma expandir-se até aos limites do inanarrável.
"Não tenhas medo, corre comigo!"
Ao abrir os olhos Siala percebeu sem perceber, pois a sua mente humana já não existia e apenas existia o verde sobre os seus cascos, o vento que lhe afagava o pelo, o movimento intenso dos musculos das patas que a impulsionavam para a frente, numa corrida que fazia tremer a Terra, o corpo que se esticava com graciosidade perfeita a cada salto...os odores que inspirava pelo focinho desenhado a branco enebriavam-lhe os sentidos de uma alegria animal sem igual...corria com o Rei, não ao seu lado, mas misturada com ele, dentro e fora dele. Ela era Ele, e Ele era ela também.
Chegados a um ribeiro que rasgava por entre pedras brancas e flores amarelas o seu caminho, abrandaram. Aproximou a cabeça da água borbulhante e provou-a com a lingua. Era fresca e saborosa como nenhuma água que alguma vez bebera...a erva que crescia nas margens era jovem e estaladiça sobre os seus dentes...
Os minutos deram lugar ás horas, as horas aos dias, os dias ás estações. Fora do tempo Siala viveu com o Rei em perfeita harmonia, aprendendo tudo o que ele se propusera a ensinar-lhe. Viveu as alegrias da Primevera e viu a vida crescer sob o calor do Verão. Enfrentou os perigos e expulsou inimigos, protegeu os seus iguais e guiou-os no Outono a outras paragens, mais altas e frias. Escavou a neve em busca de comida e aninhou-se com os outros em busca de calor para suportar os nevões do Inverno que ali era rigoroso. Tudo observou, tudo fez, tudo viveu.
Siala abriu os olhos, ainda de mão poisada no lombo da raposa. A aspereza do seu pelo trazendo-a lentamente de volta ao seu corpo. Á sua frente erguia-se o magestoso e belo Rei. O seu focinho enorme aproximou-se da sua face branca, e a lingua lambeu-lhe a lágrima que se soltara da alma.
Despediram-se sabendo que não há despedidas, e que cada um era o reflexo do outro em suas mundos separados.
Sê corajosa,
Pois o medo é apenas uma ilusão.
Sê audaz e firme, serena e decidida,
Pois só assim atravessarás cada estação.
Vê com os olhos do coração
Sente no sangue cada vibração,
Ouve o vento que te traz o odor da intenção.
Luta quando não te dão outra opção,
Ama e não deixes nunca de amar mesmo quando lutas
Porque a única luta que podes travar
é a de continuares a respirar
mesmo que aturdida pela exaustão.
Observa.
Estás sempre alerta.
E acredita sempre...
Mesmo quando o perigo espreita
Segue o teu instinto
E ele levar-te-á segura em frente.
Porque a força por si só
não te salvará
Mesmo contra o inimigo mais potente,
nada consiguirá.
Vê para além da dor
Aceita cada momento
E sê a força do Amor.

Muito mais haveria a dizer, sobre o sabor dos prados, a apereza dos cardos, o amargar das raízes...sobre o cio e as forças de uma natureza brutal e justa...sobre o nascer da vida, e quanto ela é grandiosa na sua efemeridade...mas isso só pode ser dito na linguagem dos veados, a dos humanos é demasiado limitada para tal.
Siala permitiu-se enroscar-se ainda por breves instantes no corpo imenso do Rei, que era também ela. E então deixou-o partir, libertando-o do seus braços, pois só o que é livre vive eternamente em nós. No cimo da colina, o grito do rei pôs em movimento todos os que o seguiam...Um último olhar, um último toque de alma.
Siala caminhou novamente pelo caminho que percorrera, acompanhada pela raposa silenciosa.
E tu minha amiga? Que terás tu para me ensinar?
Hoje precisavas do Rei...mas eu estou também contigo. Como ele está. Hoje caminharemos ambos na tua sombra, as nossas patas calcando cada uma das tuas pegadas. Nada temas pois nada há para temer. Hoje absorveste o que ele tinha para te dar a conhecer. Em breve voltarás cá, pois sabes que podes voltar sempre que assim quiseres. E quando for o conhecimento da Rainha que buscares, eu cá estarei para te ensinar.
Siala atravessou a ponte entre os mundos, deixando para trás o seu mundo, e retornando ao mundo que escolhera para viver essa vida.
Shiva estava deitada a seus pés, assegurando o elo de ligação e a protecção que sempre lhe votava. O Sol estava quente e reanimou-a instantaneamente. Abriu os olhos lentamente e moveu as mãos esticando os dedos para activar a circulação. Inspirou profundamente e quando soltou o ar sentiu o suave toque do Rei na sua alma, e um roçar de pelo áspero no coração.

Que este seja um dia cheio de luz.