“Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos”. O existir é um perpétuo mudar, um estar constantemente sendo e não-sendo, um devir perfeito; um constante fluir...

Se gosta seja amigo :) Namasté!

3 de novembro de 2009

Um sonho muito real



Este é o relato de um sonho muito intenso que tive esta noite. Não foi influenciado por qualquer leitura ou filme ou pensamento consciente...
Fugiam.

Foragidos talvez...os seus passos eram firmes e não vassilavam, nem o coração disparava de medo...limitavam-se a fugir ocultos pela escuridão da noite e pelas capas que lhes escondiam os corpos e os rostos. Eram 4. Mãe, filho e dois homens. Os passos femininos apenas se distingiam dos restantes por serem mais leves e ágeis. O movimento provocava ondulações das capas que revelavam pernas musculadas, corpos magros, mas grandes e fortes, o reluzir aqui e ali das espadas e adagas presas aos cintos e ás perneiras. Moviam-se rapidamente, num muro de silêncio quase impossível...os pés estavam envoltos em botas de pele gastas, que subiam até aos joelhos e prendiam com tiras de couro grossas. Vestiam túnicas de cor clara que não pertenciam ao mesmo tipo de idnumentaria das botas...

Ao longe a perseguição era ruidosa e em comparação, embrutecida. O que teriam feito? Onde se encontravam?

As paredes das casas a que se encostavam, quase fundindo os corpos com as sombras,  eram amareladas e rugosas e havia escadas em quase todas as habitações que levavam a segundos pisos e a patamares que se interligavam. Os detalhes ficaram perdidos no sonho, a passada era veloz e não se compadecia com observações do meio circundante.

As estrelas...recordo-me de olhar para as estrelas em busca de orientação. Eu era a Mãe. Consciente do perigo que enfrentávamos, a morte era apenas mais um patamar e por isso o medo não me inundava as veias com o seu fel...pelo contrário, o acto que cometeramos era mais uma facada no poder instituido contra o qual lutávamos desde que nasceramos, tínhamos sido educados para aquela vida, e para o momento que nos aguardava ávido do nosso sangue. Sangue sim, mas nunca a vontade, nunca a alma. Reconheci a raiva latente, a garra, a força naquela mulher tão diferente de mim. Era alta e forte. Os cabelos castanhos claros - talvez sujos - estavam firmemente presos no alto da cabeça, caindo no que já fora um pentedao elaborado do qual restava apenas um amaranhado de madeixas compridas. A pele era alva como a Lua, ou assim parecia banhada pelos seus raios de prata. Os traços faciais estavam endurecidos pelos anos de luta, não sei dizer se era nova...não era velha, isso sei. Os olhos semicerrados e frios denotavam o autoritarismo e segurança notáveis dos que sabem que outros dependem deles, e que sabem que não podem errar.

O ar carregado de cheiros ocres, de pessoas e animais, de fumos e fogos, de comida, de dejectos, de vida de outrora, quase que me fez acordar, mas estava ligada áquele momento...era eu que corria e deixei de lutar contra aquela força que me puxava mais para dentro daquela situação desconhecida, cada vez mais profundamente como um remoinho incontornável.

Comunicavam por gestos, ora agachando-se, ora avançando, parando e aguardando...detive-me então e olhei nos olhos aquele jovem de caracois louros e olhos esverdeados que seguia os meus movimentos de mão encaixada no punho de uma espada afiada sequiosa para ser desembrainhada e usada na carne macia de quem quer que se atravessasse no nosso caminho e tentasse impedir-nos o passo...era o meu filho. 16 anos? 20 anos? Sei que já era adulto, sei que era um guerreiro, sei que nada do que se passava lhe provocava estranheza. Ele sabia que íamos todos morrer. Eu sabia-o também. Mas animava-nos o facto de sabermos que estávamos a dar trabalho aos que nos perseguiam, que mais uma vez confrontáramos o poder com a nossa revolta, com a nossa insubordinação. Estávamos preparados desde que nasceramos. Não sei quem éramos. Não sei onde estávamos. Sei que o amava e me orgulhava tremendamente dele...mas não tinha qualquer sentimento mais, qualquer tipo de posse, ou de apego...

Subitamente sinto-me transportada mais para a frente no tempo, para um outro momento num futuro imediato. Não sei quanto tempo se passou, horas...talvez dias. As vestes são as mesmas. Tiraram-nos as capas. A pele tem marcas que antes não vira...nos pulsos e tornozelos. Doi mas estou habituada. Doi-me por dentro, como se tivesse sido queimada... Mantenho-me de costas direitas e hirtas...firmemente apoiada em duas pernas ligeiramente afastadas e pés descalços. Os dedos estão tensos e flectidos, como se quisesse fincar garras que não tenho no chão de terra batida....para manter o equilibrio que perigosamente sentia fugir-me.  Os meus olhos vêem mas o coração não sente. O coração dela não sente. Está fechado. Parece uma rocha, duro, árido...não encontro qualquer dor ou emoção nesta mulher.




O jovem meu filho, filho dela,  está deitado num estrado de tortura. Os lábios cerrados estão brancos e a pele vermelha do esforço de calar o grito que certamente deseja dar mas não dá, e do sangue que o suja. O sangue dele. Está deitado de costas sobre pregos grossos, bicos, pontas de flecha, ou qualquer outra coisa extremente cortante e pontiaguda. Há risos á nossa volta. Magoam mais que os chicotes que me flageiam a pele e rasgam as parcas vestes, carne e alma. mas não me vergam a vontade. Sei que vou morrer. Sei o que me espera. A aceitação e resignação dela são férreas como a sua vontade. Quem são estes seres?

Os homens que se riem parecem romanos, mas não posso garantir, as imagens fogem-me agora que estou desperta e estou aqui, a tentar transmitir tudo o que vi, senti, e estou certa, já vivi. Ficou-me essa sensação, mas poderá ser simplesmente uma projecção de um repúdio que sempre senti pelos romanos e o seu império. Ou pode ser uma das razões de tal repúdio que nunca consegui explicar.

Se são romanos, sei que não estamos em Roma, estamos algures no seu Império, mas não em Roma. Sei-o mas não sei porquê ou como o sei.

Os olhos do meu filho apenas reflectem os meus...desafio, troça, força, orgulho. Há um orgulho quase animal ali. Os pregos rasgam e penetram-lhe a carne...mas o pior está para vir e nós sabe-mo-lo. Vejo aterrorizada o que o espera. O que me espera. As minhas mãos grandes e largas, ensanguentadas, fecham-se firmemente sobre a corda áspera que prende no tecto enegrecido pelo fumo dos archotes, a outra parte da estrutura de madeira pejada de pregos...estes são maiores e estão sujos de sangue seco de outros que antes de nós passaram por ali. Não somos os primeiros...gostaria de poder dizer que fomos os últimos, mas não o posso dizer por não saber.

Não sei tão pouco o que fizémos, de onde viémos...quem éramos nós? Porque estaríamos a ser sujeitos a tudo aquilo?

Lembro-me dos chicotes que sem descanso me lambiam o que restava da força, desgastando-me fisicamente...gritavam-me insultos e gozavam como podia eu como mãe estar a fazer aquilo ao meu próprio filho, e riam-se, um riso que ainda me ecoa nos ouvidos...
Lembro-me dos olhos do meu filho, do sorriso que me ofereceu antes do grand finale...no segundo antes de eu cair de joelhos, sem forças, como uma montanha que desaba,  já com as costas em carne viva e onde o branco marfim já se via a despontar na zona das costelas. No segundo antes das minhas mãos perderem a força, e os dedos se abrirem ligeiramente, e a corda escorregar com uma velocidade estonteante, como uma lamina afiada, abrindo-me um sulco profundo nas palmas das mãos...o segundo em que a estrutura antes pendente do tecto se esmagou sobre o corpo dele, violentamente. O som dos ossos quebrados, da carne violentada, dos risos de escárneo, dos aplausos...nada se ouviu perante o grito animalesco que encheu a câmara arredondada, uma dor avassaladora, liberta finalmente no meu sangue, imagens do meu passado de então que me inundaram a mente e vozes, vozes dos meus pais, professores, mestres, companheiros...só me recordo da nausea, do rugido, do salto e força do embate que derrubou um dos homens cujo riso foi abruptamente silenciado num garguejo arrepiante, da espada que brilhou nas minhas mãos dilaceradas...e da escuridão.




Acordei de manhã sem saber onde estava...

E continuo sem saber onde estive.

4 comentários:

Anônimo disse...

Siala,
Que pesadelo!
Mas passou, é passado.
Fique em paz!

Bênçãos!

Cristina Paulo disse...

Oi Reyel :) não foi um pesadelo, ou pelo menos não o vivi assim nem fiquei com essa sensação. Penso que este sonho contem uma mensagem de algo que necessito e que me vai ser desvendada no momento oportuno.
Bjos de luz

Anônimo disse...

Estiveste no passado.
Virá, como dizes, a mensagem, entretanto pensa nos medos actuais, pode ser que agora os percebas melhor
digo eu, que nada sei

beijinho

Caillean )0( disse...

Querida Siala

Eu ja acho que, e isso acontece muito, voce teve um sonho lucido de uma vida pregressa. Eu ja estou acostumada, sei ate identificar quando é sonho ou quando eu vivi uma outra vida. Passado, presente e futuro andam da maos dadas. Escreva este sonho um dia voce irá compreende-lo, sei por experiencia propria.

Me parece coisa do passado e sempre tem alguma ligaçao com o que voce ta passando no momento, mesmo que seja pra interpretar, qdo for o momento certo vai dar um insight.
Obrigada pela partilha adorei ler :)
Beijinhos encantados linda
)0(